que cheiro você estava sentindo ao tirar esta foto?
você se lembra?
qualquer curso de fotografia vai te dizer que “o que não aparece na câmera é tão importante quanto o que você capturou”, e mesmo sem o curso, é possível concluir a mesma coisa. é uma referência à capacidade imagética do ser humano, além de sua curiosidade: se há um chiclete levemente mastigado e ainda brilhando no chão, conseguimos visualizar que alguém acabou de jogar ele ali. foi a fotógrafa que cuspiu? foi um transeunte? foi um gato que encontrou ele em outro lugar e veio trazer como presente?
mas será que você estava com nojo quando tirou a foto? com raiva, por alguém ter jogado chiclete no chão?
o medo de heidegger em “the question concerning technology” é que a humanidade deixe de buscar a verdade que pode residir no que não está revelado porque a tecnologia já serve como um encapsulamento de tudo o que vale a pena ser revelado, e ele, é claro, chamou isso de “framing”. ele termina de um jeito bem positivo, dizendo que a verdade da tecnologia como um aspecto macrocósmico em si está oculta, e por estar oculta ela é verdade (que necessariamente está oculta sob os signos perceptíveis), e cabe a humanidade revelá-la.
zizek vai um pouco além quando comenta heidegger, e, por viver (estar?) algumas décadas depois, percebe a fotografia como um jeito de enviesar a realidade: tal realidade ainda existe, mas estamos navegando uma realidade que é manipulada por meios modernos a existir como uma camada de referenciação. não é que a foto captura a realidade que existe além (e aquém) do aparelho, é que ela arranca essa realidade de um modo meio colonizador, fazendo ela existir nessa outra camada. os seres humanos são, portanto, apenas ferramentas de manipulação do que pode tocar o mundo de verdade: a câmera.
os metadados em uma foto dizem muita coisa. a câmera, resolução, data, local, nome, mas é tudo hermético. eles justificam e criam o mundo que existe dentro daquela imagem, auxiliam o estudo de como replicá-la, de como tocar aquele mundo de outras formas.
mas não tem o cheiro nos metadados.
os meta-metadados são o que zizek não considerou: o humano, manipulando a ferramenta que toca a realidade, por si só, é influenciado por ela antes de escolher o que capturar. o humor, a temperatura, uma gripe, uma tristeza, uma euforia, são todas características que influenciam como você vai enxergar o que quer capturar, e, portanto, o que quer capturar numa foto.
dentre todas as formas de arte que angariam sua força de interpretações alheias, a fotografia é uma necromante do autor.
os processos de criação costumam ser menos imediatos e por conseguinte eles envolvem ideias constantemente maleáveis. a fotografia (ainda que editada, planejada), é o resultado de uma faixa temporal muito menor em seu cerne de criação. o que o autor estava pensando naquele exato momento é um segredo que ele pode escolher manter ou compartilhar, mas é imprescindível na semiótica da obra como a sensibilidade de uma fração de segundo. as outras interpretações envolvem aquele espaço já cristalizado no tempo.
e é só a visão que pode ser posada. o espaço pode ser manipulado, mas ele vai continuar existindo antes e depois, para sempre (em ambas as direções). o mise-en-scene de uma foto são os sentidos (no plural, mesmo).
uma foto em seu quarto nos stories é uma peça para montar o quebra-cabeça da sua casa. a sua casa é uma peça para o quebra-cabeça da sua situação. a sua situação é uma peça para…
será que alguém já completou?