HISTÓRIAS SOBRE DOR I
o espelho não imitou seus movimentos.
confuso, o zumbido ardido no meio da sua cabeça continuava, como vinha acontecendo nos últimos quinze anos. quinze? talvez vinte. os analgésicos que aliviavam cada vez menos continuavam queimando sua coxa, apesar do tecido do bolso separar as duas coisas. era impossível ignorar a presença da cartela, como ela queria.
o que mais ajudava era dormir. uma dipirona alguns minutos antes de tentar cair no sono era o suficiente para ter entre cinco e sete horas sem dor, que passavam como um piscar de olhos. podia estar pior ao acordar, tanto faz. ainda que sua mente, à deriva, não sentisse o alívio enquanto orfeu a controlava, seu corpo sentiria o conforto e este acalento era o suficiente.
buscando ajuda, serpenteou por vários caminhos e chamados. religiosos (provação), esotéricos (conhecimento acumulado), ocultos (chip implantado), remédios diferentes, legais e ilegais, que diminuem e expandem a área em que a dor se manifesta, mas nada. o que mais ajudava era a acupuntura, que ele resolveu tentar após a insistência de alguns silenciosos. no caminho, e ele precisava do caminho, a luz entrava em seus olhos como uma colher e o som entrava em seus ouvidos ameaçando transbordar; o outro lado das agulhas. pensava, discreto: só ajudou porque é mais dor.
os sussurros escritos num panfleto jogado no balcão de um dos trinta e tantos consultórios médicos que visitou no último ano soaram como alucinação (outra companheira constante). o desespero não se embocava mais em dez minutos de explicação para outra ressonância magnética, era hora de tentar o que ninguém havia tentado antes.
no laboratório, depois de explicarem que o processo era indolor, gentilmente, discretamente, silenciosamente recomendaram um contato caso ele quisesse comprar uma arma. se fosse comprar, seria pra si: se seu clone não tivesse a cefaleia, estava disposto a deixá-lo viver em seu lugar. esse era o objetivo final do plano.
o espelho sem bordas se mexeu sozinho de novo. levou as mãos à cabeça, enquanto ainda se acostumava com os movimentos de seu novo corpo. franziu a testa. apertou os olhos. rangeu os dentes.