em maio de 2018 recebi uma notícia que me afetou de maneira irreparavelmente profunda: a aranha mais velha do mundo havia morrido aos 43 anos. era uma aranha-de-alçapão (espécie que acreditavam viver cerca de 25). sua morte sequer foi natural — foi picada por uma vespa, coitada!
uma aranha-de-alçapão é um animal “caseiro”, com o perdão da antropomorfização forçada de uma força da natureza que não se limita às particularidades sociais humanas, como deve dar para inferir pelo nome. seus instintos “exploradores” acabam quando a subsistência é saciada, e então volta para o alçapão. até na hora de caçar, ela espera as presas aparecerem na porta de sua casa e ataca de sopetão, trazendo a comida de volta para dentro de casa, onde deixa seus filhos, que irão, um dia, sair e cavar seus próprios buracos.
as afetações emocionais e até histriônicas que senti quando essa aranha da qual nunca tinha ouvido falar até então morreu me soavam como mistério também, mas sabia que era falta de auto-entendimento. um dia eu entenderia, e o primeiro passo era admirar uma sabedoria que eu jamais poderia compreender linguisticamente: aquela aranha conhecia a própria vida, proporcionalmente, mais do que qualquer ser humano que ostenta sua auto-consciência aos quatro cantos. ela não perdeu tempo em cinismo, nem buscou experiências que atrapalhassem seu objetivo de sobrevivência. se ela existiu num espaço de dez metros quadrados em sua vida inteira, aprofundou-se naquela geografia como ninguém mais de nenhuma espécie adjacente. conforme envelhecia, em vez de lamentar, aprendeu a evitar ir tão longe de seu buraco, afinal, não poderia protegê-lo em uma luta. luta essa que eventualmente tirou sua vida, mas muito depois de qualquer outra conterrânea. a aranha não conseguiria explicar seu discernimento para nenhuma outra. o conhecimento do mundo animal é bem pouco consciente, mesmo que eles em si sejam. são solipsistas de um jeito comunitário: ordens, instruções, toques, mas todos apenas de forma sensorialmente estimulante.
quando me vejo atualmente pensando na redistribuição de vocabulário que está se gerando para apaziguar algoritmos deificados e dogmáticos (por exemplo, o youtuber que fala “unalive” em vez de “suicide” para não perder alcance) que vai mudar o léxico do mundo inteiro, visto que é por onde a maior parte das pessoas recebe seu conteúdo informativo, ou acabo por nadar numa corrente de pensamento infeliz que parte do princípio de que por muito tempo considerei o idioma inglês extremamente frígido, seco e pouco criativo (salvas exceções literárias óbvias) mas que hoje, com o acesso fácil à pornografia, provavelmente é o idioma que mais gente no mundo sexualiza (e quase ninguém transando pensa no quão poéticas são suas exclamações), tento me lembrar da aranha. não de uma forma wiki-de-estética que nega a intelectualização das coisas em prol de sua “vibe”, mas de um jeito ansiolítico mesmo: essas coisas me afetam apenas enquanto ideias a serem provadas, possibilidades que geram debates mentais que me entretém antes de me deprimir e continuam me pegando porque acho que consigo pará-los na área do entretenimento, e nunca consigo. absorver o discurso é participar do discurso também, como disseram os pós-modernos franceses, e eu, como continental, concordo. eu não preciso me afetar antes que isso me afete, e quando me afetar, provavelmente nem vai ser grande coisa.
a dinâmica do que nos tira do nosso fluxo versus a interrupção ser parte do fluxo em si me dá dor de cabeça porque pra mim não tem diferença entre amor fati (nietzsche falando que é preciso não apenas suportar todas as facetas da vida, mas amá-las) e amor dei (spinoza falando que todas as facetas da vida são formas de se compreender o amor de Deus). um, é claro, é focado na experiência humana e o outro na experiência espiritual, mas nenhum dos dois expressa o breque necessário para a paz que a aranha expressou
quando a notícia apareceu para mim, por meio de algoritmo deificado e dogmático.
eu estou tentando parar de falar palavrão. também é por uma razão para a qual ninguém daria bola: uma vez apareceu um vídeo qualquer de super mario maker 2 na página inicial do meu youtube e assisti despretensiosamente. o dono do canal praticamente só joga esse jogo então como quem não quer nada eu continuei assistindo os outros vídeos de vez em quando. imaginei que muitas crianças assistem pelo jogo em si, mas conforme fui me aprofundando, via doações e comentários de gente falando que gosta de assistir em família, com os filhos, no fim do dia, ou que gosta de deixar tocando nos momentos mais chatos do trabalho. aí percebi que o conteúdo é totalmente amigável para a família toda para comportar essas pessoas: ele não fala palavrão, não fica gritando, e as poucas piadas de duplo sentido não são mais pesadas do que aquelas que aparecem no instagram com alguma imagem de, sei lá, monstros s. a., e alguém dizendo “eu não entendia isso quando era criança!!”.
achei que seria legal eu fazer um esforço consciente para me expressar de forma similar no dia-a-dia de modo que evitasse o risco num futuro em que eu estivesse à volta de pessoas para as quais isso fosse uma exigência silenciosa (crianças, por exemplo), e em geral qualquer desafio de linguagem me apetece para evitar vícios e conhecer melhor o meu próprio espaço de dez metros quadrados.
(como eu não tenho cabelo para pintar quando vejo alguém que fica bem com o cabelo daquela cor em algum videogame, me resta linguística mesmo.)
o dono do canal jamais imaginaria o impacto que teve em mim, reconfigurando certas partes do meu cérebro por um período que espero que dure alguns anos, sem nunca ter tido nenhum objetivo além de, talvez poder mostrar os vídeos à própria família e, é claro, apaziguar o algoritmo.
no café da manhã dos campeões, do vonnegut, o sentido da vida é ser os olhos, os ouvidos e a consciência do criador do universo (“you fool!”), citação que me escapa e me volta em momentos tão aleatórios quanto a memória da aranha. durante o arco de sua morte eu ainda nem tinha lido o livro mas provavelmente havia sonhado com ele.
é fácil tomar essa filosofia de uma forma completamente ascética e sacra, sem querer profanar os sentidos de Deus. essa forma que é valiosa de certa forma, nas pessoas certas. também dá pra levar do modo oposto, querendo experimentar tudo o que não é sagrado, o que também deve fazer sentido para alguns, e talvez seja necessário. quando eu perguntar pra ele vou guardar a resposta para mim.
os (vários) olhos, ouvidos e consciência da aranha, em seus dez metros quadrados, sua casinha, e seu profundo valor ontológico dentre a comunidade aracnídea (e a minha) também são valiosos em suas limitações e aprofundamentos em coisas herméticas, em sistemas fechados, em humildade física e brevidade existencial. as teias que ela formou fisicamente provavelmente a fizeram muito bem durante sua vida, mas as teias formadas através de toques não-sentidos foram as que cruzaram o limiar dos meus olhos, e me fizeram tomar decisões que ainda reverberam cinco anos depois, sem nem contar tudo o que reverberou cinco anos antes. quantas vezes eu sonhei com aranhas? quantas vezes eu assisti esse vídeo pensando em flertar?
algumas pessoas são os nódulos que conectam várias partes da teia, mas algumas são as linhas quase imperceptíveis da teia em si em si; cujos toques não são percebidos a não ser que te prendam, mas sempre estão lá.
eu pintei um quadro que era para ser um presente, mas gostei tanto dele que seu destino foi minha parede. espero que goste mesmo assim.